Que ideia foi essa...

A atualização de algumas regras de ortografia da nossa querida língua portuguesa vão além das paroxítonas com ditongos abertos e tremas. O texto abaixo do jornalista Fernando Molica aborda esta "adequação", que não resume-se apenas à mudança de nossos hábitos ortográficos.

O AI-5 ortográfico
Por Fernando Molica, em 30 de dezembro de 2008.

Hoje, no Jornal Nacional, o Pasquale Cipro Neto ressaltou um aspecto fundamental nesta questão da reforma ortográfica: ela tem um custo. O custo de todos os livros que ficarão desatualizados, o custo dos corretores ortográficos dos programas dos computadores. E há mais custos, como o custo sentimental, a sensação de se reconhecer mais velho, desatualizado, fora do tempo. O mundo me chega pela língua. O idioma é também o instrumento com o qual tento, pelo menos, me fazer entender. E, daqui a poucas horas, este instrumento será mudado. O pouco que se sei será menos ainda.

Escrevo ao lado de uma estante que ocupa toda uma parede. Quantos livros haverá aqui? 800? Mil? Sei lá. Sei é que todos esses livros, assim como os que ficam nas outras estantes aqui de casa, estão condenados à morte, à velhice eterna, a uma espécie de arteriosclerose: continuarão existindo, mas serão levados menos a sério, estão todos condenados. Como os livros anteriores à reforma de 1972. Lembro que, alguns bons anos depois da anistia, trabalhei com um ex-exilado, um sujeito que estava fora do país quando houve a tal reforma. Pois, o texto do cara era cheio de acentos inexistentes, cheirava a mofo, a velhice. Uma velhice arbitrária, causada não pelo movimento da vida, pelo passar do tempo, mas por uma decisão autoritária, pouco democrática - estávamos no auge da ditadura militar.

Mais grave que o envelhecimento precoce dos livros aqui de casa é a morte anunciada do acervo das editoras. Milhares, milhares - milhões? - de exemplares estocados que, em pouco tempo, terão como único destino o lixo, a fogueira. Temo por uma espécie de hiato, uma zerada de estoque. Livros não-vendidos mas que continuavam em catálogo terão que ser descartados, vão parecer peças de museu com todos os seus muitos acentos, tremas e hífens. A grande maioria, a maioria absoluta, não será reeditada. Isso é gravíssimo. Futuros leitores não terão acesso a obras relativamente recentes. Livros lançados em 2008 ficarão caquéticos em pouquíssimo tempo.

Esta nova reforma é, até onde me lembro, fruto de uma conjuntura particular, de uma tentativa - por sinal, fracassada - de criação de uma tal Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, uma iniciativa do Zé Aparecido que encontrou no Antônio Houaiss sua tradução gramatical. E o Houaiss tratou de inventar uma novilíngua, a língua que ele achava que deveria ser a nossa língua. Não a portuguesa, não a 'brasileira' (chegam a falar assim em Portugal), mas a língua que ele achava que deveríamos escrever. Não uma língua que tivera sua evolução pautada pelos costumes, pela prática, mas uma língua de laboratório, biônica. Ninguém nunca escrevera do jeito que ele achou que deveríamos passar a escrever. Ele inventou uma língua e conseguiu emplacar essa besteira, pelo menos, entre nós.

Em maio passado, estive em Portugal. Pelo que vi, esta reforma não vai pegar por lá. Elas a tem como uma arbitrariedade, como coisa de brasileiros, uma tentativa de estupro de um idioma que eles, apesar da desigualdade numérica em relação ao número de falantes, continuam a chamar de seu. Duvido que eles aceitem esse negócio. Trouxas somos nós que aceitamos ser pioneiros nessa aventura.

OK, fala-se na necessidade de unificação, ressalta-se que o português é a única língua culta que não tem uma gramática única. E daí? As diferenças hoje são, na prática, menores. Lembro que livros portugueses eram 'traduzidos' no Brasil, eram adaptados ao nosso idioma. Se não me engano, Saramago acabou com isso, exigiu que as edições brasileiras respeitassem seu português. E o vento que ventou aqui ventou lá. Brasileiros publicados em Portugal passaram a exigir o mesmo. E a vida seguiu bem assim, sem traumas e com tremas.

A convivência com tantas ditaduras e com tantos pacotes econômicos nos fez mais dóceis e passivos. É absurdo que tantas mudanças sejam acompanhadas com tanta letargia. No mínimo isso demonstra - que surpresa? - um absoluto descaso pela língua, pela história de cada um de nós. Talvez ainda seja tempo de acabar com essa sandice, com esse ato institucional que nos toma algo precioso demais.

Comentários

O Profeta disse…
A humildade da água
Uma folha solta no vento
Cai sobre o mundo um manto de fino orvalho
Cada gota aprisiona um pensamento


Que o ano de 2009 seja a chegada aos teus mais
verdadeiros sonhos, que a tua alma encontre as mil cores
do feliz pensamento…


Que os nossos caminhos se juntem no espaço intermédio
entre a ternura e o tempo da viajem.



Mágico beijo
Oi Gabriela,

Muito bom esse texto do Fernando! Impressionante a capacidade de não colocar na balança todos os prós e contras dessa mudança tão radical...

Abraços,
Emerson Souza disse…
Oi Gabi,
Tb vejo esta reforma como uma atitude irresponsável...que loucura.
Bjus.
Gabriela Angeli disse…
Nossa, você é misterioso hein, profeta! Mensagem inusitada...

*** *** *** ***

Oi, Fernanda!

O Molica é realmente muito bom, assim que li este texto fiquei com a mesma sensação que você!


*** *** *** ***

Oi, Emerson!

A proposta desta mudança é muito fraca e falsa, realmente uma atitute irresponsável...

Obrigada pelos comentários!

Um beijo,
Gabi.
MARU disse…
Eu moro na España.Sou espanhola.
O principal problema da educaçäo, é a cantidade de reformas educativas que sofremos.

Näo só no idioma, o lenguagem, sinäo na forma de desarrolhar o conjunto dos estudos.

Desde hà 30 anos, de democracia, cada alternança de governo, modifica o sistema educativo...

Assim que conforme passam os anos, todos ficamos atrazados...

Gostei muito do teu blog, voy voltar.
Gabriela Angeli disse…
Oi, Luna!¡ Que buena surpresa receberla acá! Mi español no está nada bueno, pero vamos intentar así mismo... risos

Estoy contenta en saber que a ti le gustó mi blog. Conoci suyo e voy a visitarla siempre!

Cualquier tipo de reforma tiene que ser pensada, no importa lo idioma. Yo sé que la lenguagem tiene que ser aprimorada, pero eso tiene que ser natural y no comercial...

Besos y espero verla más veces!
Gabi.

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